sexta-feira, 15 de maio de 2009

João Moreira Salles – não fixando o olhar

(Matéria publicada na Revista Básica - Setembro de 2007)

Um documentário sobre a guerra do tráfico no Rio (“Notícias de uma Guerra Particular”), outro sobre um pianista silencioso (“Nelson Freire”), o retrato de uma campanha presidencial única na história do Brasil (“Entreatos”), um filme sobre uma grande casa e seu excêntrico mordomo (“Santiago”) e por fim uma revista bem diferente da maioria. Essas são as linhas gerais dos principais documentários de João Moreira Salles e seu mais novo empreendimento, a revista Piauí, lançada no fim de 2006.

Cineasta, editor e, periodicamente, professor (atualmente ele ministra um curso na Casa do Saber e também já integrou o quadro de professores da PUC), ele costuma produzir filmes elogiados pela crítica e premiados em festivais nacionais e internacionais.

Ultimamente, seu foco de trabalho se deslocou da telona para o jornalismo, mais especificamente para a revista mensal da qual é fundador e editor. Para ele, essa mudança é coerente. Seu campo continua sendo a não-ficção e o terreno onde busca suas histórias permanece sendo o Brasil. “Eu mesmo faço uma ou outra reportagem grande e não é substancialmente diferente do que se eu estivesse com uma câmera. O procedimento é quase o mesmo. Eu vou olhar, ver como as pessoas são, os gestos, o que elas fazem e, depois, escrever”.

Fugindo do entendimento de que um filme documentário existe para ensinar as pessoas sobre algo que elas deveriam saber, João não busca conscientizar ninguém e não acredita em mudar o mundo através do cinema. Por essa linha de documentário ele não cultiva nenhuma simpatia: “Eu faço documentário pelo documentário, ele é um fim em si e não um instrumento de engenharia social”. Sua revista segue o mesmo princípio. A Piauí não tem editorial nem colunas de opinião, apenas reportagens que buscam contar, de forma original, fatos que ocorrem no país, além de poesias, histórias em quadrinhos e bastante humor.

Seu anseio é testemunhar o que é singular, transmitindo uma história que para ele simplesmente não poderia deixar de ser registrada.

Sobre o filme “Notícias de uma Guerra Particular”, de 1999, que retrata o cotidiano de traficantes e moradores do Morro Santa Marta, em Botafogo, ele afirma: “Era um momento da história do Rio de Janeiro em que houve uma mudança de patamar de violência. Eu, Kátia (Lund, co-diretora do filme) e Waltinho (Walter Salles, irmão de João, que participou do início do filme), como moradores da cidade, nos perguntamos: ‘O que está acontecendo?’. Tínhamos que pegar uma câmera e tentar testemunhar aquilo, mas sem querer defender nenhuma tese. O filme nasce de um desejo de testemunhar”.

Um impulso parecido o levou, em 2002, a filmar a campanha política de Lula à presidência da República. “Não era o Lula em si, não eram as suas idéias... Era o fato de uma pessoa como ele, vindo de onde veio e que se projetou como líder sindical, estar ali onde ele estava. Eleger o Lula significava, inevitavelmente, uma novidade histórica. Como documentarista, você se sente desafiado. É uma coisa que só acontece uma vez”.

Apesar de filmar fatos reais e não defender opiniões, suas histórias são sempre autorais. “Eu filmo a partir do meu ponto de vista, não acredito na objetividade”. Cada vez mais, ele busca expor claramente esse fato. É o que se percebe em “Santiago”, em que a voz do documentarista está presente do início ao fim e é central dentro do filme. O ato de escolha e intervenção - que permeia qualquer documentário, mas que muitas vezes é mascarado - fica escancarado neste trabalho, que fala sobre o mordomo da casa onde João passou a infância, na Gávea, sua relação com esta mansão e, mais que tudo sobre o ato subjetivo de construção de uma obra não ficcional.

João Moreira Salles toca em questões que não se perdem com o tempo. Em toda sua obra ele fala, acima de tudo, sobre a essência humana, seja o pior ou melhor dela. No filme “Nelson Freire”, de 2003, sobre um dos maiores pianistas brasileiros da História, por exemplo, ele fala principalmente sobre a ordem, a beleza e a importância do silêncio. Em “Santiago”, além da história factual da vida de seu antigo mordomo, ele trata das relações estabelecidas entre empregado e empregador e das relações de poder; entre muitos outros temas subjetivos, que nunca chegam ao espectador como questões fechadas, dadas como verdades, e sim, como uma maneira de enxergar a realidade.

A forma particular do olhar desse profissional que pensou, alimentou e fez todos esses filmes foi construído ao longo de um percurso próprio, não muito diferente da maioria, nem muito igual.

João nasceu numa família influente e culta. Seu pai foi embaixador, ministro e fundador do Unibanco. Eles moravam numa casa na Gávea, hoje o Instituto Moreira Salles, centro de referência em música e fotografia. “Eu cresci na ditadura. Era um período em que as pessoas tinham medo. Não só aquelas que lutavam contra os militares, mas também aquelas que podiam ser alvo de ações da esquerda. Pelo fato de meu pai ser banqueiro, imaginava-se que a minha família poderia sofrer algum ato de violência, ainda que ele tivesse sido ministro do João Goulart. Eu tive uma infância bastante protegida”.

Até o meio da adolescência estudou na Escola Suíça, em Santa Teresa. A escola tinha poucos alunos e ele poucos amigos. Sua rotina dessa época se resumia a casa, ao colégio e ao percurso longo que fazia entre uma e outra, todos os dias.

Somente quando, aos 16 anos, mudou de escola e foi para o São Vicente de Paulo, no Cosme Velho, ele passou a vivenciar mais intensamente a cidade e a ter uma vida como qualquer adolescente. “Aí sim, eu comecei a freqüentar Ipanema e Leblon. Descobri amigos, descobri uma cidade que você vê ao ar livre e passei a ter um ponto na praia onde eu sabia que encontraria as pessoas. No meu caso, era ali em frente ao Country, onde gostava de jogar vôlei até o fim do dia”. Hoje em dia, sua relação com a cidade ao ar livre se mantém, João diz aproveitar o Rio correndo na orla ou na areia de três a quatro vezes por semana e nadando no mar ou subindo até Vista Chinesa de bicicleta, nos fins-de-semana. “Eu nunca me inscrevi numa academia. Tudo que eu preciso está do lado de fora; está no Rio. Eu uso muito a cidade, mas à noite eu fico mais em casa”. João é casado, tem um filho de dezesseis anos e mora no Leblon.

Ele estudou Economia na PUC e sentia-se muito à vontade no que ele considera o mais próximo de um verdadeiro campus universitário. O curso lhe deu disciplina de estudo e base fundamental de conhecimento: “Foi muito importante esse curso para mim, fiz bons amigos e tinha a sensação de estar no lugar certo pro Brasil naquela época. Mas por outro lado, apesar de ser bom aluno, eu sabia que não seria economista”.

Depois de formado a questão se abriu: se não seguiria Economia, o que faria? Foi quando o irmão Walter Salles, diretor de cinema, o chamou para ajudá-lo em um documentário sobre o Japão. João aceitou e a partir daí, se caminho como cineasta foi sendo traçado: “Foi uma coisa acidental, nunca foi uma vocação, um ‘eu só quero fazer cinema!’”.

O direcionamento atual para o jornalismo então se justifica. O foco de João Moreira Salles é a observação, o meio com que fará isso, não é o principal: “Para mim essa migração não é tão extraordinária assim como as pessoas pensam. Deixar o cinema por um tempo para mim não é um problema. Eu nunca estive no cinema com os dois pés no chão. Eu estive lá sempre hesitando, pensando se estava no lugar certo. Aqui (na revista) eu me sinto mais à vontade”.